A não intervenção judicial no mérito administrativo leva ao “velho oeste” disciplinar

Existe um ditado antigo que diz “onde não existe justiça se faz justiça com as próprias mãos”. O ditado se refere a lugares nos quais impera a anomia: uma espécie de anarquia, desrespeito às leis, uma situação constante de fraude e desorganização.

É ali, onde impera a anomia, que não existe justiça. Não existe revisão judicial dos atos e não existe esperança de defesa quando se é acusado em um processo “oficial”.

Devido a impossibilidade de revisão do mérito administrativo, os processos disciplinares se tornaram o novo “velho oeste” da administração. Assim como foi no “velho oeste” idealizado, a justiça deixa de estar presente e as divergências passam necessariamente a serem resolvidas através da sublimação.

Quanto vale a violação permanente e irreparável de um direito fundamenta?

Pra mim, vale uma guerra civil. Com todo o sangue derramado, morte, sofrimento, custo e perdas que são o quê realmente leva à existência do direito.

Não existe direito fundamental dado de presente.

Todo direito fundamental só é fundamental porque existem pessoas dispostas a matar e a morrer na defesa desse direito fundamental.

Com a impossibilidade da revisão judicial do mérito administrativo, todo processo administrativo fraudado é um episódio de tudo ou nada. No qual uma hora ou outra, terão em seus meio pessoas dispostas a matar e a morrer pela defesa de um direito fundamental.

Esses serão os verdadeiros heróis a longo prazo, mesmo que sua conduta seja completamente inadequada ao momento atual.

Mas vamos ao caso dos procuradores do município de Registro, no estado de São Paulo. No qual a suposta instauração de um procedimento disciplinar descambou para a agressão.

No caso que ganhou considerável repercussão, um procurador do município de Registro agrediu, no local de trabalho, sua chefe, a Procuradora-Geral.

As imagens divulgadas não deixam dúvida sobre a agressão.

O motivo não justifica o ato, mas permite entender melhor sua motivação.

De acordo com uma reportagem do G1, a agressão teria sido motivada pela abertura de um processo administrativo contra o procurador.

No entanto, a mesma reportagem menciona que o motivo foi um memorando enviado pela Procuradora-Chefe à Secretaria Administrativa com uma proposta de procedimento administrativo em desfavor do procurador.

Volto aqui a esclarecer que o motivo não justifica o ato, mas permite entender melhor a controversa situação.

A carreira de Procurador é a carreira jurídica do minicípio.

Os procuradores são os servidores aos quais o prefeito e outras autoridades de segundo escalão confiam a solução de dívidas sobre a legalidade ou ilegalidade de atos ou normas da administração.

O quê um procurador escreve em um parecer, funciona quase que como uma versão concreta de uma lei.

Não conheço autoridade pública que faça diferente um ato administrativo ou tome qualquer decisão diferente do que tenha sido orientado por um procurador.

É nesse contexto, então, que a Procuradora-Chefe enviou um memorando à Secretaria Administrativa [da prefeitura] propondo a abertura de um processo disciplinar.

Pois bem. A Lei ordinária 1.852/2019 do município de Registro, que cria e organiza a Procuradoria Geral e o cargo de Procurador, não especifica nada a respeito de como deve ser conduzido uma sindicância administrativa ou um processo disciplinar.

Mas no município de Registro há a Lei Complementar 38/2008. Que estabelece o regime jurídico dos servidores públicos municipais. Servidores esses que incluem os Procuradores municipais.

De acordo com o capítulo II do Título IV dessa Lei Complementar, o Processo administrativo só pode ser instaurado pela autoridade competente. Só é necessário no caso em que a pena possa levar a demissão do servidor e deve ser conduzido por três servidores. Mas quem é a autoridade competente para a instauração do processo?

A Lei complementar não especifica. Mas há no município uma Comissão Permanente, cuja existência se encontra prevista no Decreto 3.155/2021.

De acordo com esse decreto, a autoridade que tiver ciência de possível irregularidade no serviço público de Registro, deve requerer a instauração de sindicância administrativa. Que será conduzida por essa comissão. Ficando a propositura da penalidade e a proposta de instauração do Processo Administrativo delegada à essa comissão.

Ou seja, a Procuradora-Geral não tinha a competência para propor a instauração direta do Processo Disciplinar e, como já mencionado, proposta de procurador é na pratica uma determinação. Mesmo que, no caso, tenha sido aparentemente ilegal.

Volto a dizer que nada justifica o ato de agressão, mas o contexto serve para entender melhor a situação.

Além de trocar o requerimento pela proposta, que tem efeitos distintos já que a proposta tem competência específica em se tratando de matéria disciplinar, a decisão sobre a aplicação de várias penalidades administrativas foi delegada à Procuradora-Geral do município de Registro através do Decreto 3.155/2021. Ocasionando a infeliz possibilidade de que a decisão final sobre uma infração administrativa recaísse exatamente na mesma pessoa que recomendou ilegalmente sua instauração.

É aí que a situação diverge do que se espera em um estado de direito e descamba para a anomia instutucinal.

Qualquer oportunidade de defesa no processo administrativo por parte do agressor deixou de existir no momento em que a Procuradora-Geral propôs a instauração do processo, ciente de que sua proposta seria atendida e ciente de que ela mesma seria responsável pela decisão final sobre a aplicação ou não da penalidade ao servidor.

Não é preciso ser advogado para entender que quando o acusador é o juiz, não existe defesa e quando o mérito não pode ser revisto judicialmente, a única escapatória é o tudo ou nada. Com o risco concreto do nada resultar em homicídio, vias de fato ou agreção.

Quem em sã consciência fica inerte diante de um faz de conta de processo no qual é acusado e será julgado por seu acusador, sem possibilidade de revisão judicial da decisão???

Eu não. Fico feliz por existir pessoas que ainda se levantam contra a violação absurda do direito de defesa, um direito fundamental.

Mesmo que a demissão do agressor seja praticamente certa e mesmo que nada justifique a agressão, são atos como esse que nos lembram de onde vêm os direitos fundamentais.

O direito de defesa processual só existe na Constituição porque sem ele os conflitos passam a ser resolvidos com sangue. De forma figurada ou literal.

É o direito de defesa processual que pacifica a civilização.

Sem direito de defesa, as consequências ao Procurador seriam as mesmas.

O que ele fez foi apenas o nada do tudo ou nada institucional.

Veja o ato que foi publicado no Diário Oficial:

O Secretario de Administração de Registro nomeou a si mesmo presidente da comissão com base em um relatório/memorando da Procuradora-Gera (acusação). A mesma Procuradora-Geral à quem foi delegada o poder de decisão sobre a aplicação da penalidade após a conclusão do processo disciplinar.

O processo foi instaurado sem a sindicância administrativa prevista e sem o direito de defesa do servidor.

Com a autonomeação com base no relatório/memorando da Procuradora-Geral, o Secretário de Administração e a Procuradora-Geral concentraram em si mesmos e de forma irregular toda a competência de investigação, acusação, revisão e decisão do processo disciplinar.

Sem a possibilidade de revisão judicial do mérito administrativo, a armadilha já estava armada contra o Procurador.